A Jangada de S. Torpes
Nos inícios dos anos 70 do século XX, o campo dunar que orla
a linha de costa entre a baía de S. Torpes e Porto Covo, no concelho de Sines,
era habitado por uma comunidade piscatória que vivia em habitações construídas
com materiais perecíveis e explorava pequenos hortejos instalados nas
depressões intradunares. Obtinha o pão por troca directa com peixe, junto dos
camponeses da encosta meridional dos Chãos de Sines.
A família dos Cadeireiros instalara-se sobretudo nas praias
de Vale Figueira e da Oliveirinha, preservando uma liberdade ancestral
dispensada, em grande parte, de integração no modo de produção capitalista. A
jangada de S. Torpes, ou barco de canas, era o seu principal instrumento de
trabalho e podia ser vista sobre as areias, contra a vertente litoral, acima do
nível da preia-mar. “As jangadas não têm matricula… A Guarda Fiscal não gosta,
mas são mais seguras”. Eram utilizadas sobretudo para a pesca da navalheira,
com recurso a nassas metálicas, mas também para a pesca da sardinha com redes e
pesca com aparelhos de anzóis, podendo pescar em fundos de 12 braças
(Filgueiras, 1977, p. 21). Executadas com materiais localmente abundantes
(canas e madeira), sem velas e movidas por um remo de duas pás manejado
comummente de pé, revelavam-se muito eficientes: “cortam melhor o mar, e,
enquanto se viram vinte botes, vira-se só uma jangada…”. Os Cadeireiros
mantiveram a sua identidade cultural até aos inícios do novo milénio,
integrando na economia piscatória tradicional o turismo de praia, através da construção
e exploração na Praia de Vale Figueira, de pequeno restaurante sazonal de nome
“Vieirinha”. As saudáveis iguarias de peixe e marisco frescos cozinhados em
lareira de seixos eram apreciadas em arquitectura ligeira, ingenuamente
revestida por conchas marinhas que contavam histórias de mar. Este monumento de arte popular único
viria a ser demolido por ordem do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa
Vicentina (PNSACV), que decidiu pôr fim aos diversos apoios de praia de origem
local, substituindo-os por modelos estandardizados implantados por investidores
exógenos. Vim a encontrar, servindo às mesas do novo restaurante da Praia de
Vale Figueira, uma jovem da família Cadeireiros, assalariada pela modernidade
imposta pelo PNSACV. O avô fora a personagem
inspiradora da residência
artística que a pintora Graça
Morais fez em Sines, entre Agosto e Outubro de 2005,
destinada à preparação da exposição inaugural do Centro de Artes de Sines ,
intitulada “Os olhos azuis do mar”. A pintora procurou e encontrou a Sines
pré-industrial e piscatória.
Deste particular contexto social onde a liberdade individual
era o mais
precioso bem, subsiste a jangada de S. Torpes, mesmo que hoje somente em espaço
museológico ou presente em destroços nas areias da Praia da Oliveirinha, onde
em 1972 existiam dez exemplares activos. Foi objecto de estudo pelo arquitecto
Octávio Lixa Filgueiras, notável estudioso de arqueologia naval portuguesa, que
apresentou uma comunicação sobre o tema ao II Colóquio de Arqueologia de Setúbal
(1-3/11/75), organizado pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal
(MAEDS). A jangada de S. Torpes era uma ilustre desconhecida do público
erudito, merecendo a Octávio Lixa Filgueiras o interesse pela continuação do
seu estudo, através de análises comparativas com outras jangadas das mais
diversas geografias: jangada de caniço (chitatar) dos Achirimas de Moçambique,
a bimbá, do Lobito, jangadas da Tasmânia, jangadas de juncos do Oristano, na
Sardenha, entre muitas outras. A este estranho “engenho de navegar” que alia
primitivismo, simplicidade e economia de meios a vasto saber de experiência
feito, quer se assemelhe mais ou menos às jangadas do Nilo Branco, às de Lixus,
na costa ocidental de Marrocos, ou às de Oristano, aplica-se bem, em nosso
entender, a noção de convergência cultural. A sua origem conceptual bem pode
remontar às últimas sociedades de caçadores-pescadores-recolectores
semi-sedentários, que há 8000-7500 anos povoaram significativamente o Alentejo Litoral, em
especial o troço de S. Torpes a Porto Covo (Vale Marim I e Samouqueira), e sulcavam o mar próximo, em busca da maior
parte do seu sustento (Soares, 1996).
Octávio Lixa Filgueiras acabaria por publicar, em 1977, em edição do Centro
de Estudos de Marinha, o trabalho: A jangada de S. Torpes. Um problema de
arqueologia naval. Desta mesma publicação respigámos a descrição sobre o barco
de canas, único na arquitectura naval portuguesa:
“De planta alongada, quási em ogiva, a sua estrutura básica
é constituída por dois feixes ou molhos de canas amarradas por meio de cordas e
arames, e por um corpo intercalar achatado, formando uma espécie de estrado,
também do mesmo material. O conjunto fica sustido por dois pares de travessas
de madeira, cada par fixado pelas faces opostas dessa estrutura básica […] Para
facilitar a sua deslocação pelo areal usa-se um pequeno e rudimentar carro de
duas rodas” (p. 4-5).
Bibliografia principal:
FILGUEIRAS, O. Lixa (1977) – A Jangada de S. Torpes. Um
problema de arqueologia naval. Lisboa:
Centro de Estudos de Marinha, pp. 25.
SOARES, J. (1996) – Padrões de povoamento e subsistência no
Mesolítico da Costa Sudoeste portuguesa. Zephyrus, 49, p.109-124.
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